COLÓQUIO DE ÓSTIA
Consagrada página da antologia católica, a descrição do Colóquio de Ostia feita pelo próprio Santo Agostinho permite-nos admirar o belo vôo de espírito de dois grandes santos, exemplos de mãe e de penitente.
Elogio de Santa Mônica
Educada no pudor e na sobriedade, e submissa por Ti, Senhor, a seus pais, mais que por seus pais a Ti, quando chegou à idade de casar-se, foi dada a um marido, a quem serviu como senhor. Procurava conquistá-lo para Ti, falando-lhe de Ti através das virtudes com as quais Tu a tornaste bela, e pelas quais o marido a respeitava, amava e admirava. Minha mãe havia aprendido a não contrariá-lo quando o via irado.
Assim era minha mãe, graças às lições que Tu, Senhor, seu mestre espiritual, lhe ensinaste. Com esse seu modo de proceder, fecundado pela tua graça, ela acabou por conquistar para Ti o marido, quando ele se converteu.
A sogra, de início, irritava-se contra ela devido a intrigas de escravas, mas foi também conquistada por seu respeito, perseverança e doçura. E as duas viveram em perfeito relacionamento de recíproca benevolência, digna de registro.
Concedeste ainda, ó meu Deus, um grande dom àquela tua fiel serva, em cujo seio me criaste. Sempre que havia discórdia entre pessoas, ela procurava quanto possível, mostrar-se conciliadora. Nada referia de uma a outra pessoa, senão o que podia levá-las a se reconciliarem. Julgava insuficiente não provocar inimizades com ditos malévolos, antes esforçava-se por extingui- las com boas palavras.
Minha mãe era a serva de todos os teus servos. Todos os que a conheciam louvavam, honravam e amavam a Ti, por sentirem nela tua presença, comprovada pelos frutos de uma vida santa.
Êxtase ao falar do Céu
Ao aproximar-se o dia em que ia sair desta vida, ela e eu nos encontrávamos sozinhos, apoiados numa janela cuja vista dava para o jardim. Afastados da multidão, falávamos a sós, muito suavemente, esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, tentávamos imaginar qual seria a vida dos santos, que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou.
Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da vossa fonte, a fonte da Vida, que está
em Vós, para que ajudados segundo a vossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar- se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao céu, de onde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra. Subindo ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras, chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente vosso povo com o nutrimento da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo que existiu e o que há de existir, sem que Ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e sempre será.
Enquanto assim falávamos, ávidos de alcançar a Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num supremo ímpeto do nosso coração. Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito, voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo que subsiste por si mesmo, nunca envelhece e tudo renova?
“Nenhuma coisa mais me dá gosto nesta vida”
E comentávamos: “Ah, se o tumulto da carne pudesse silenciar; se as imagens da terra, da água e do ar se calassem; se os céus e a própria alma se calassem e esta superasse a si própria, não mais pensando em si mesma; se toda língua, todos os sonhos e revelações da fantasia, se tudo se calasse completamente – porque todas as coisas falam aos que sabem ouvir, e dizem: fomos feitas por Aquele que dura eternamente – se, todos os seres emudecessem para escutar o seu Criador, e se somente Ele falasse, não mais pelas criaturas, mas por si mesmo; se O escutássemos não mais através de língua carnal, de anjo, por estrondo de trovão, ou por parábolas misteriosas, mas diretamente a Quem ouvimos, sem intermediários, tal como acabamos de experimentar, atingindo num relance a Sabedoria eterna; se essa contemplação se prolongasse e nos arrebatasse, não seria isto a realização do convite: Vem alegrar-te com o teu Senhor? (Mt.25-21).”
Ainda que isso dizíamos, Vós bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e seus prazeres nos pareciam vis naquele dia, quando assim conversávamos. Minha mãe então me disse: “Meu filho, quanto a mim, nenhuma coisa mais me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui! Por um só motivo eu desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servires ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”
Cinco dias depois, caiu doente e perdeu o sentidos. Ao voltar a si, perguntou: “Onde eu estava?” E acrescentou: “Enterrareis aqui mesmo vossa mãe”. Meu irmão manifestou o desejo de vê-la morrer em nossa pátria, mas voltando- se para mim, ela disse: “Vê o que ele está dizendo!!! Enterrai este corpo em qualquer lugar, não vos preocupeis com ele. Para Deus não há distância que seja longe. Não devo temer que no fim dos séculos Ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará. Faço-vos apenas um pedido: lembrai-vos de mim no altar do Senhor”
* * *
Santa Mônica neste êxtase viu tais maravilhas de Deus que nem a companhia do filho santo, por cuja conversão havia rezado e chorado trinta anos, a retinha mais nesta terra. Queria ir para o Céu, pois sabia que, junto de Deus, se acharia mais próxima daquele que tanto amava.
(Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2004, n. 32, p. 24-25)