Setembro, Mês da Bíblia: Um passeio por entre as Palavras de Deus.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP (Lumen Veritatis – Editorial – N. 15 – Abril/Junho 2011)
Desde toda a eternidade, ao conceber a obra da criação, teve Deus desejo de comunicar-se ao homem. Ao acompanharmos o processo histórico da humanidade desde seu início, admiramos a beleza da Sabedoria divina ao fazer-se conhecer através de uma revelação paulatina de Si mesmo.
Em nossos dias, a sua Palavra não deixa de interpelar-nos, apesar de estarmos num mundo que frequentemente “sente Deus como supérfluo ou alheio”, 1 e por isso, o Papa Bento XVI destacou na Verbum Domini a prioridade de “reabrir ao homem atual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância” (cf. Jo 10, 10) (VD 2).
Se nos detivermos nas Sagradas Escrituras, veremos que nada há de supérfluo. De fato, “Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações, tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos”. 2 Para tal, erigiu Deus o profetismo. Além do magistério ordinário dos sacerdotes, suscitou profetas que transmitiam as novas revelações e, ao mesmo tempo, conservavam e interpretavam as anteriores, constituindo assim instrumentos de Deus para educar o seu povo e prepará-lo para o Evangelho (cf. VD 42; DV 7).
A linhagem dos profetas culminou com o aparecimento de João Batista, o maior entre todos. A Sagrada Escritura canta as glórias desses varões, conselheiros de grande prudência, que tudo conheciam por meio de visões proféticas, como Elias, Isaías, Jeremias, Daniel, etc. O profeta, no Antigo Testamento,
era a ‘seta eleita de Deus’, aquela flecha que os reis guerreiros guardavam na sua aljava para matar no combate o monarca inimigo. O programa de vida é muito parecido em todos os profetas: ‘romper e destruir, edificar e plantar’; como bons viticultores do monte Carmelo que podam e queimam as cepas velhas para tornar possível o fruto do outono. A história dos profetas é a tragédia daqueles homens que ‘não podem deixar de falar porque a Palavra de Javé os queima ‘por dentro’. 3
Eis a alta vocação dos profetas, tão elevada que a Sagrada Escritura os menciona frequentemente em paralelo com a própria Lei: “A lei e os profetas duraram até João” (Lc 16, 16); “Encorajou-os citando a lei e os profetas” (2 Mac 15, 9). Eles, ademais, sempre foram os guias do povo de Deus, indicando- lhe sem falha os caminhos do Senhor. Entretanto, o termo profeta não se refere somente ao que se entende nas línguas modernas como aquele que anuncia o futuro, mas remete-nos para as Escrituras. É o homem “inspirado por Deus que comunica aos homens o pensamento e o querer divinos”. 4
São Tomás de Aquino explica-nos que, em diversas épocas da história da Igreja, nunca faltaram pessoas dotadas de espírito profético, não para revelar novas doutrinas, mas para guiar a conduta dos homens. 5 Também hoje, os batizados, partícipes no ministério profético de Cristo, estão chamados ao testemunho da Verdade pelas suas palavras e ações, de modo a, fortalecidos pela oração, aderirem indefectivelmente a sua doutrina, nela se aprofundarem e anunciarem o que viram e ouviram da parte do Senhor. 6 Os que assim procedem, conforme o Catecismo da Igreja Católica, são aqueles que têm a Elias por pai (cf. CEC 2582), pois à sua semelhança, procuram o Rosto de Deus, o regresso do povo à Fé e a intercessão da Providência nos acontecimentos da História (cf. CEC 2581-2584), em suma, consomem-se de “zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos” (cf. 1 Rs 19, 14).
Além disso, na sua infinita Sabedoria, Deus quis que os homens estivessem apoiados numa rocha inabalável. Ao operar a Redenção, o Divino Mestre instituiu o Magistério da Igreja, para ensinar e interpretar o que oficialmente havia sido revelado. Se Deus, através do “Espírito da verdade”, 7 “falou outrora aos nossos pais pelos Profetas, nestes dias, que são os últimos, falou- -nos por meio do Filho” (Hb 1, 1-2), que por sua vez ordenou ao Apóstolos: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 18-20).
A transmissão do Evangelho – necessária para que os homens conheçam a verdade e alcancem a salvação – passou a fazer-se de duas maneiras: “Pelos Apóstolos, que na pregação oral, por exemplos e instituições, transmitiram aquelas coisas que, ou receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo, ou aprenderam das sugestões do Espírito Santo”, e “também por aqueles apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, puseram por escrito a mensagem da salvação” (DV 7). Ou seja, conforme ensina o Papa Bento XVI na Verbum Domini, “não é possível uma compreensão autêntica da revelação cristã fora da ação do Paráclito” (VD 15).
Por sua vez, os Apóstolos deixaram aos seus sucessores, os bispos, o encargo do Magistério, de modo que o Evangelho sempre se mantivesse inalterado e vivo na Igreja, e se conservasse, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos (cf. DV 8). Por isso afirma D. Isidro Gomá y Tomás:
A Sagrada Escritura é como uma carta de Deus dirigida aos homens; mas estes não podem interpretá-la por si sós: precisam ser conduzidos pela Igreja, que é a intérprete nata e autorizada das divinas Escrituras, e tem para isso a luz e a assistência do Espírito Santo. Por isso, diz Lucas (24, 45), que Jesus, antes de subir aos Céus, ‘abriu a inteligência de seus Apóstolos para que compreendessem as Escrituras’. Não tenhamos, pois, a presunção de ler estas deleitáveis cartas de Deus sem o sentido de Deus e sem a união com os que têm a autoridade de Deus para interpretá-las. Seria condenar-nos à ignorância, quiçá a erros grosseiros sobre seu conteúdo. Este é o segredo das quedas daqueles que interpretam as Escrituras fora da Igreja Católica. 8
No próprio Evangelho encontramos o critério para interpretar de maneira infalível a Tradição e até mesmo a Escritura, jamais errando em matéria de Fé e de Moral: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16, 18). A Cátedra infalível de Pedro é um ponto fundamental para a vida sobrenatural e até mesmo intelectual de todo católico. Sem esse grande dom concedido pelo Divino Fundador à sua Igreja, não teria ela atravessado um só século de História. A este propósito, afirma a Constituição Dogmática Lumen Gentium:
A infalibilidade, de que o Divino Redentor dotou a sua Igreja para definir a doutrina de fé e costumes, abrange o depósito da Revelação que deve ser guardado com zelo e exposto com fidelidade. O Romano Pontífice, cabeça do colégio episcopal, goza desta infalibilidade em virtude do seu ofício, quando define uma doutrina de fé ou de costumes, como supremo Pastor e Doutor de todos os cristãos, confirmando na fé os seus irmãos (cf. Lc 22, 32) […] [Ele] não fala como pessoa privada, mas expõe ou defende a doutrina da fé católica como mestre supremo da Igreja universal, no qual reside de modo singular o carisma da infalibilidade da mesma Igreja (LG 25).
Também a Verbum Domini lembra que “o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja” (VD 29). Por isso, os exegetas e os teólogos devem submeter-se filialmente a esta Mãe de Sabedoria, crescendo em amor e observância, santificando a sua vida, conforme conclui o mesmo documento através das inspiradas palavras de São Pedro: “‘Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular’ (2 Pd 1, 20-21) […] O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que a torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica” (VD 29).
Notas:
1) BENTO XVI. Verbum Domini: Exortação Apostólica Pós-Sinodal. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2010. p. 5. n. 2. (Doravante, VD).
2) CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição dogmática sobre a divina revelação, 18 out. 1965. n. 7. (Doravante, DV).
3) LÓPEZ MELÚS, Rafael María. El profeta san Elías, padre espiritual del Carmelo. Onda-Castello: Amarcar, 1986.
4) Loc. cit.
5) Cf. S. Th. II-II, q. 174, a. 6, ad 3.
6) Cf. Catecismo Igreja Católica, n. 783; 785; 2581-2584. (Doravante, CEC).
7) É o próprio Jesus, no Evangelho de São João, que se refere ao Espírito Santo como “Espírito da verdade” (cf. Jo 14, 17; 15, 26; 16, 13).
8 ) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, Vol. IV, p. 442.