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À beira da morte… numa Noite de Natal…

Com seu estilo atraente e espirituoso, Lenôtre escreveu um de seus contos de Natal de maneira própria a desmitificar certas idéias sobre as causas mais profundas que determinaram a revolução de 1789 na França, bem como acerca do relacionamento entre as classes sociais naquela época.

Imaginem a Conciergerie1, prisão lúgubre onde eram detidos os condenados pelos revolucionários, muitos deles membros da aristocracia. É véspera de Natal de 1792, digamos, e ali se encontra um conde cujo “crime” maior era o de pertencer a uma classe que se destacava pela cultura, elegância e distinção.

Nessa época, a Conciergerie estava repleta de presos, e todas as manhãs uma carreta vinha apanhar dez ou doze condenados que seriam executados naquele dia. Um pretenso oficial de justiça lia a sentença com a pena de morte, e logo depois ordenava que os levassem para a praça onde se erguia a tristemente célebre guilhotina.

Após a partida da carreta — ou das carretas, conforme a quantidade de vítimas destinadas à execução —, os remanescentes respiravam um pouco aliviados. Mas, à medida que ia entardecendo, sentiam chegar provavelmente o crespúsculo de suas vidas. E quando conseguiam dormir à noite, muitos acordavam agoniados de madrugada, pois a próxima carroça poderia levá-los ao cadafalso.

Assim passavam-se os dias, as semanas, os meses na Conciergerie. Era uma guerra de nervos.

O conde está sozinho, pois seus companheiros de infortúnio já haviam seguido seu destino cruel. Ele observa as coisas através das grades de sua masmorra, e se lembra das festas de Natal passadas em sua residência parisiense. Era viúvo, possuía apenas um filho, ainda menino, para o qual preparava uma pequena ceia. À meia-noite ele despertava a criança, e esta, alegre e maravilhada, contemplava a árvore de Natal decorada com encantadores enfeites e velinhas vermelhas; saboreava com os olhos apetitosos alimentos dispostos na mesa e, sobre os sapatos deixados junto à lareira, encontrava os presentes trazidos pelo Papai Noel. O conde se desdobrava em afetos e carinhos para com o filho, tentando substituir desse modo o papel da mãe, já falecida.

Ora, numa dessas noites de Natal, o nobre esperava a hora de acordar o menino quando ouviu um grande barulho vindo da chaminé da lareira apagada. Para a sua surpresa, vê que alguém despenca lá do alto, aprumase e entra no salão da casa. Algo assustado, o conde verificou tratar-se do menino pobre a quem ele costumava pagar para manter a chaminé limpa. De fato, o garoto estava trabalhando naquele momento, perdeu o equilíbrio e caiu lá de cima, coberto de fuligem. Também ele um tanto espantado, o menino considerou aquela sala belamente ornada para uma festa de Natal, e o homem ali, sozinho, vestido como os nobres daquele tempo: sapatos de verniz com salto vermelho e fivelas douradas; meias de seda até os joelhos, roupas de veludo ou igualmente de seda, cabeleira empoada, etc. Era o conde.

Noutro relance de vistas, notou com olhar faminto a mesa posta com os deliciosos quitutes e doces, destinados ao filho da casa que dormia. O conde se compadeceu dele, ajudou-o a remover o pó e a sujeira, e o mandou se lavar. Por fim, deu-lhe um régio presente de Natal: uma moeda de ouro chamada luís, porque trazia a efígie do rei com esse nome. Havia então luíses referentes ao monarcas Luís XV e Luís XVI, e uma só dessas moedas bastava para comprar muito mais que o necessário para uma boa refeição. O limpador de chaminé se retirou muito agradecido e, nos anos seguintes, na noite de Natal, retornava à casa do conde e lhe oferecia seus préstimos. O nobre o recebia com bonomia, aceitava a proposta e, na hora de se despedirem, dava sempre ao garoto uma moeda de ouro. Além disso, começou a auxiliar também a família dele, e essa solicitude acabou constituindo entre ambos uma simpatia repleta de benevolência.

Alguns anos se passaram, o filho do conde e o limpador de chaminé se tornaram mocinhos. Sobrevém a Revolução Francesa, o nobre é perseguido, seu filho foge, e a mansão fica abandonada.

Retornemos à Conciergerie e aos fatos daquela noite de Natal. Enquanto o conde está imerso nessas e noutras recordações de cenas familiares, seu filho, que caíra na pobreza, vagueia pelas ruas do bairro onde se localiza sua casa. Em determinado momento ele encontra o limpador de chaminé, de quem ficara amigo e que viera para a costumeira “visita” de Natal. Este último, estranhando o aspecto do conhecido, pergunta pelo seu nobre benfeitor.

— Você não sabe? Meu pai foi preso.

— Mas, como?! O conde, um homem tão bom, na prisão?!

Perplexidade compreensível da parte do limpador de chaminés, pois muitas pessoas da própria Paris não sabiam ao certo o que a Revolução urdia e praticava. O filho do conde lhe conta então como os nobres estavam sendo detidos, e concluiu:

— Este ano, meu caro, não há luís de ouro, nem para você, nem para mim…

— Não há nada?

— Tenho apenas um maço de moedas, para subsistir e arranjar um meio de libertar meu pai, mas não sei como fazê-lo.

— Onde o conde está preso?

— Na Conciergerie.

— Talvez eu possa fazer algo. Se eu lhe pedir o maço de moedas para libertar seu pai, o senhor confia em mim?

— Tome-o!

Na prisão, o conde está só em sua cela, a um canto da qual crepitam algumas brasas numa lareira raquítica. O rapaz consegue descer pela chaminé e penetrar na cela do nobre, evitando de se queimar nas brasas. Surpreso, o conde exclama:

— Você, aqui?! Entrando pela chaminé!

— Não temos um minuto a perder, senhor conde. Por favor, execute o plano que vou lhe propor, para fugirmos. Venho trazendo uma roupa toda suja, de limpador de chaminés, para o senhor também.

E o conde faz o que nunca imaginou na vida, ou seja, veste aquela roupa gasta e enegrecida. O mocinho apanha um pouco de fuligem na lareira e a espalha na face do nobre. Em seguida, combinam:

— Vamos sair pela portaria, dizendo que já terminamos o serviço de limpeza. É a hora da troca de guardas; o que assume o posto não sabe quem entrou para limpar a chaminé. Se formos agora, existe uma possibilidade de escaparmos. Não perca tempo em me agradecer. Vamos, temos de sair!

O conde entende a situação e os dois se dirigem à saída do cárcere. Perguntado pelo porteiro sobre o que estava acontecendo, o rapaz faz um sinal ao conde, indicando-lhe “vá andando”, e responde:

— Sou limpador de chaminé e recomendei àquele meu colega para ir caminhando, pois queria dizer a você o seguinte: tenho um pacote de moedas para ser entregue a seu chefe. Porém, não sei bem o que fazer: ou ele e eu esperamos seu chefe acordar, ou saímos, deixando as moedas aos seus cuidados…

Nesse momento, o conde e o rapaz ficaram entre a vida e a morte. O porteiro pensou um pouco e disse:

— Pode deixar o pacote aqui, que eu depois entrego. Vocês vão andando.

Claro, de posse das moedas, o porteiro tinha todo o interesse em que os dois se retirassem, a fim de não revelarem nada ao chefe.

Eles saem devagar. Caminham pela Paris deserta e chegam a um local próximo à mansão do conde, onde estava marcado o encontro com seu filho. Montam em cavalos já preparados e fogem. Os três se achavam a salvo da fúria revolucionária.

Esse pequeno conto ilustra uma realidade histórica e constitui um exemplo concreto de como a desigualdade harmônica e proporcionada das categorias sociais é um elemento para a união dos homens e não fonte de desunião.

(DR. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA)

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1 Antiga habitação do porteiro (concierge, em francês), encarregado dos prisioneiros de um palácio real da Idade Média, situado em Paris. Transformada em cárcere na Revolução Francesa, a Conciergerie, atualmente dependência do Palácio de Justiça, compõe-se de três salas góticas — uma delas, a dos “Passos perdidos” (Pas perdus), considerada por Dr. Plinio uma das mais belas do mundo — e quatro torres.

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